Um cavalo pela frente

 Um cavalo pela frente

A resposta branda desvia o furor, mas a palavra dura suscita a ira. (Provérbios 15:1).

Aquele sábado seria meu dia de folga, mas uma colega, por alguma razão, não poderia cumprir seu plantão e eu me comprometi a substituí-la. Saí bem cedo de casa. Como moro relativamente perto do local de trabalho, decidi ir andando, já que o dia amanheceu bonito e convidativo.

No meu itinerário, estava Dique do Tororó, um verdadeiro parnaso com seu magistral espelho d’água a refletir as frondosas árvores que o circundam. E, logicamente, aproveitaria a ocasião para fazer minha “viagem” mental, “escrever” minhas crônicas e contos, declamar baixinho meus versos. E foi o que fiz.

Já no local da minha jornada, no Setor de Liberação de Veículos Apreendidos, da Transalvador, às 9 horas, o atendimento ao público foi iniciado. Eu já estava ali a postos em um dos guichês, quando entra na sala um homem acompanhado de uma mulher, ambos bem vestidos, cabelos ainda úmidos, a exalarem olores de seus perfumes que se espargiram agradavelmente em todo o ambiente.

O senhor dirigiu-se a minha bancada. Cumprimentei-o, e ele, sem ao menos olhar para mim, respondeu-me secamente. E, de forma tosca, praticamente atirou sobre o balcão o Termo de Apreensão de Veículo. Como é de rotina neste tipo de atendimento, lhe pedi o documento do veículo e a carteira de habilitação, quando ouvi estes sonoros e inesperados questionamentos como resposta:

— O senhor é analfabeto? Não sabe ler, não?

Inspirei profundamente, baixei ligeiramente a cabeça e, com bastante calma, arranjada não sei onde, disse-lhe de maneira pausada:

— Cidadão, o senhor é a primeira pessoa que estou atendendo hoje. O plantão era de uma colega, que não pôde vir. O senhor não tem nada a ver com isso. Mas é tão ruim que o dia da gente comece dessa forma. Portanto, eu lhe peço o documento do veículo e a sua habilitação, por favor.

— O documento do carro vocês prenderam também.

Nisso, ele estava com razão. Por descuido meu, nem observei que o agente lavrador do termo de apreensão havia anotado que o documento do veiculo estava anexo, isto é, fora recolhido. Fui então ao armário onde ficam tais documentos, peguei o processo e retornei calmamente ao atendimento, quando aquele cidadão voltou a manifestar-se, agora, de maneira um tanto educada, a demonstrar, talvez, arrependimento pelas palavras ácidas a mim dirigidas:

— O senhor me desculpe. O senhor não tem nada com isso. Se meu carro foi preso, a culpa foi exclusivamente minha, que deixei de pagar o licenciamento. E já pensou, num primeiro atendimento do dia, o senhor receber de cara um cavalo pela frente?

– Não. Não é bem assim que penso. O senhor não é um cavalo. Se eu também estivesse no seu lugar, sem dúvida, estaria chateado, talvez só não agisse dessa forma. Mas tudo bem, tudo superado, tudo zerado — retruquei e ele continuou:

— Antes de tirar meu carro, eu gostaria de ver primeiro como ele está. Posso?

— Claro que sim.

Como também é de rotina, eu poderia dar-lhe uma autorização para que ele a apresentasse ao agente responsável pelo pátio onde ficam os veículos recolhidos, a fim de que pudesse ver seu automóvel. Não o fiz. Preferi eu mesmo o acompanhar. Lá chegando, ele olhou detalhadamente seu veículo e voltamos ao atendimento, onde emiti um boleto bancário para pagamento de remoção e estadia.

Ele saiu para pagar. Tempos depois, retornou e fui novamente ao pátio com ele para liberar o automóvel. No trajeto, novamente pediu-me mil desculpas e disse que esse não é seu comportamento habitual. Talvez tenha sido reflexo de extenuante jornada de trabalho de que é vítima, visto ser ele um dos engenheiros civis de empreiteiras, responsável pela construção da Arena Fonte Nova, que têm prazos exíguos para sua conclusão. E eu procurei de alguma forma entendê-lo.

A vida nos apresenta múltiplos momentos como este para testar de alguma forma nossa paciência. Se devolvermos com pedra as pedradas recebidas, certamente não será a melhor opção, porque, se assim agirmos, isso só nos renderá ressentimentos, mágoas e arrependimentos. 

Se este autor, por outro lado, agisse de modo diverso, é certo que esta crônica inexistiria e, sabe-se lá, ela nem serviria, numa eventualidade, de reflexão para quem da mesma tenha tomado conhecimento e resolvesse pô-la em prática. Ademais, e finalmente, quase sempre prevalecerá para mim o ensinamento da sabedoria e da sensatez expressas na memorável frase do festejado poeta maranhense Ferreira Gullar: “É melhor ser feliz do que ter razão”.

Por Novais Neto

Leia mais

Chama no Zap