Reis, rezas e registros
É bíblico o dito que diz que a fé move montanhas. No caso das Folias de Santos Reis a fé move, remove e renova regiões inteiras e faz isso com melodia, ritmo, dinâmica, timbre, andamento e harmonia utilizando de vozes marcantes, belíssimos instrumentos, lindos cantos e algumas rezas até mesmo em latim, coisa rara nos dias atuais.
É assim que o ano se finda e recomeça em terras distantes lá no Oeste da Bahia, para ser específico, na cidade de Santa Maria da Vitória.
As festividades começam em 25 de dezembro, cumprindo a tradição da visitação dos reis magos ao Menino de Belém, e se estendem até meados de janeiro com a tradicional reza que faz nova a esperança do homem e da mulher sertaneja através de votos e promessas. Se por um lado temos os atos de fé (o sagrado), no outro temos os acontecimentos ditos profanos: as festas, as bebidas, as danças, as comilanças (…), eles se completam como pão e vinho. Existem juntinhos. Ao meu ver, sagrado e profano, para esse caso específico, coexistem. A linha tênue entre um e outro é insignificante. Fato é que é motivo de celebração.
As manifestações culturais brasileiras são essencialmente belas, saltam aos olhos. Em cada canto um evento ainda mais belo. Muda de acordo a estação do ano, próprio de nossa pluralidade. Aqui em nosso torrão saboreamos o verão, um verão de quase um ano inteiro.
Folia de Reis, Reisado, ou Festa de Santos Reis (a opção de nomenclatura depende de grupo a grupo) é uma manifestação de cunho cristão-católico-religioso que se faz nas vivências das comunidades. Essa tradição, segundo a história, chega ao Brasil e se espalha, sobretudo no nordeste, por contribuição de exploradores religiosos portugueses. Agora apropriada é se faz representação cultural do povo dessa terra. Só em Santa Maria da Vitória, numa catalogação ligeira e sem muito aprofundamento, foram registrados nos dois últimos anos mais de 17 grupos de folias de Santos Reis, número expressivo. Da comunidade de Casa de Pedra à região de Açúdina se acha grupos de Folias de Santos Reis. Isso mostra que essa manifestação é parte da identidade de todo o território do Corrente, pois esse número tende a ser parecido ou quem sabe até maior em outras cidades da região.
Mas, afinal, o que isso quer dizer ou diz?
Os fatos acima gritam à todos nós, de maneira especial ao poder público e gestores culturais, que é preciso urgentemente entender e ‘valorizar’ nossas raízes culturais. Aqui não é sobre financiamento nem dinheiro que falo, é sobre a responsabilidade de ‘preservação’ da memória cultural de toda uma região. No bojo das políticas públicas de cultura as manifestações populares, como o reisado, não têm recebido a atenção que deveriam, mas isso é tema para melhor aprofundamento no futuro.
Segundo a historiadora Helena Pignatari “um povo sem história é um povo sem memória” e eu complemento: sem história, sem memória, sem futuro e sem presente. É a isso que todos estamos fadados se ousarmos não (re)conhecer os valores presentes em nossas tradições, valores sutilmente condensados. Há que ter sensibilidade para identificá-los.
Halbwachs, sociólogo francês, ao dissertar sobre memória social diz que “a história é a compilação dos fatos que ocuparam maior lugar na memória dos homens. No entanto, lidos nos livros, ensinados e aprendidos nas escolas, os acontecimentos passados são selecionados, comparados e classificados segundo necessidades ou regras que não se impunham aos círculos dos homens que por muito tempo foram seu repositório vivo” (2013, p. 100-1).
A partir disso um questionamento: que lugar, nos livros ou nas instituições, ocupam nossa história e memória local? A seletividade nos contempla de alguma forma? Deixo para que respondam ou que ao menos pensem sobre esses questionamentos.
A ideia dos documentários
E, depois de ter rapidamente conversado sobre rezas e reisados, é hora então de falar sobre registros. Como sabemos, há várias formas de se registrar algo, mas isso depende dos recurso e tecnologias disponíveis, algumas vezes caros outras nem tanto, para alguns bastam os sentidos humanos: a mente, o olhar, o cheiro… Não há quem não tenha um cheiro que o/a faça lembrar da infância ou uma paisagem que o/a faça voltar no tempo e no espaço. A vida é também feita dessas coisas não palpáveis que existem exatamente para que a materialidade de acontecimentos, fatos e pessoas possam existir com seus significados e significantes.
Não é significativo guardar aquilo que nada significa. A nossa mente de forma autônoma trata de fazer a seleção do que é importante ou não. É assim que acontece com as nossas memórias.
Não guardar é de alguma maneira ‘perder’. Assim sendo, há os que perdem por não entender o ‘valor’ e os que perdem porque não souberam guardar. Consequentemente é importante decidir a qual desses dois grupos queremos fazer parte.
Ao contrário da memória de “cal e pedra” que se torna lembrança calcificada (por exemplo: um prédio, uma ponte, uma casa…) as manifestações e saberes imateriais possuem outra dinâmica, daí a necessidade do registro e do reconhecimento, coisa que os órgãos gestores de cultura raramente fizeram em nossa região. Talvez isso explica o ‘desaparecimento’ de muitos eventos tradicionais considerados importantes dos quais restam tão somente o dolorido saudosismo.
Foi nesse sentido, de maneira comprometida e responsável, que surgiu o projeto “Histórias de Santos Reis”, do qual tive imenso prazer em compartilhar autoria com o respeitável professor e pesquisador Cleudir Neves. Na ocasião dos dias 20 e 21 de janeiro do corrente ano fizemos o lançamento de dois vídeos documentários sobre as Folias de Santos Reis cujo protagonismo ficou por conta das comunidades de Capim Grosso e Piengo. Talvez tudo isso seja algo muito pouco e é, porém o suficiente para que duas importantes manifestações culturais de nossa cidade sejam, de alguma forma, resguardadas e registradas passando a se materializar enquanto memória social.
Quanto ao evento dividiu-se em dois principais momentos, o primeiro de pesquisa e contato com as comunidades citadas onde através de entrevista vivenciamos toda cosmologia e importância desses momentos de celebrações; e o segundo foi o prazer da devolução desse material editado (sistematizado), primeiro para as comunidades lá no meio rural e depois para toda sociedade em evento realizado estrategicamente no campus da Universidade Federal do Oeste da Bahia reconhecendo ser este o lugar da pesquisa e de sociabilização do saberes.
Por fim, nós do Coletivo Culturas Correntes, simbolicamente e por meio de certificado, atestamos a Folia de Reis de Rumão da Comunidade de Capim Grosso, a Folia de Reis da Comunidade de Piengo, o Reis de São Francisco de São Félix do Coribe, os grupos de Reis de Guarany, Reis de Maria e Reisado Sá Ana de Santa Maria da Vitória como patrimônios da cultura imaterial do Território da Bacia do Rio Corrente.
Deu se então os dois primeiros passos: (re)conhecimento e registros. Que outros possam ser dados não só por nós na condição de pesquisadores, mas por toda a comunidade como forma de manutenção de nossa história do passado e do presente e também pelas instituições de ensino como responsáveis pela provocação de saberes e pelo poder público local cumprindo com a sua obrigação constitucional de serem provedores dos direitos culturais.
E viva Santos Reis! Viva os foliões e folionas!
Viva! Viva! Viva!