Crônica para uma canção censurada

 Crônica para uma canção censurada

Com cabelo longos, camisa florida e calça da moda, o Novais Neto dos anos 70 pousa para foto

Com cabelos longos, camisa florida e calça boca de sino, o Novais Neto dos anos 70 posa para foto em frente a casa da família na rua Teixeira de Freitas

A música sempre esteve presente em minha vida, ora através de canções rotuladas de dor de cotovelo ou dor de meio de braço, cantadas por minha mãe, ora por meu pai, que, sentado à frente de uma antiga máquina de costura alemã, Gritszner, a costurar suas botinas, seus borzeguins e sapatos, noite adentro, assoviava as músicas Xodó, de Gilberto Gil, e Mulher Rendeira, composta por Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, segundo afirmam os pesquisadores, o padre Frederico Bezerra Maciel e Câmara Cascudo.

Nas décadas de 1960 e 1970, foi quando mais me vi atraído pela música. Ouvia quase (?!) todo tipo de música, desde Elvis Presley a Waldick Soriano, influenciado que fui por muitos sapateiros e seleiros vindos de Iguaí, Vitória da Conquista, Jequié e norte de Minas Gerais para Santa Maria da Vitória à procura de novos mercados de trabalho. Naquela época, aportaram em terras santa-marienses, Charqueada, Vitório, Waldick, Valdeci, Diva, Nenezinho, Dunga, Rubens, Sidney e tantos outros que a memória certamente, neste momento, me trai.

Uma das primeiras músicas que aprendi toda a letra foi justamente Paixão de um homem, de Waldick Soriano, a mim ensinada por Maninho de Joaquinzinho, que trabalhava de sapateiro para meu pai, posteriormente, ficando mais conhecido pelo apelido de Maninho da Churrascaria ou Maninho de Dita. Foi ele, inclusive, que me ensinou a contar até 100. Peguei a manha e contei sozinho até 1.000. Gastei um caderno inteiro, que era para usar no ano letivo. Quase apanhei da minha mãe, já que ela teve que comprar outro. Mas Maninho me acudiu.

Ainda naquele período, tanto eu quanto meu primo René Neves de Sá ouvíamos bastante as rádios Globo, Bandeirantes, principalmente, o programa O Poder da Mensagem, de Hélio Ribeiro; e a Inconfidência, de Minas. O programa de Big Ben, da Rádio Mundial (RJ), era o preferido de muitos jovens contemporâneos.

Um episódio, no entanto, marcou verdadeiramente aquela época: minha mãe proibiu-me de cantar a música Crítica (1975), do soteropolitano Cyro Aguiar, acusando-me de ter criado a letra só para pirraçá-la, já que eu tinha o “bom hábito” de fazer isso para as músicas que não sabia. Vejam, portanto, o que diz uma das canções de que mais gosto, motivo desta crônica, de autoria do referido sambista:

Veja como a vida passa / A solidão aumenta / E você só pensa em criticar / Acha defeito em tudo / Até me deixa mudo / Sem saber sorrir / Só fala pra ferir

Não vê que a vida passa / E a solidão aumenta / No seu coração.

Veja como você fica / Quando você olha / E depressa grita sem pensar / E fala mal daqui / E fala mal dali / Vive a resmungar e a se lamentar / Só se realiza / Quando abre a boca para reclamar

Vou-me embora daqui / Vou procurar outro lugar / Não aguento viver / Com quem só pensa em criticar / Deixe o tempo passar / E vamos ver / Quem tinha mais razão / Você vai aprender / Como viver na solidão.

Para não carregar a culpa, isto é, comprovar minha inocência, a Rádio Bandeirantes me ajudou. Certa tarde, Hélio Ribeiro, que apresentava o programa O Poder da Mensagem, começou a tocar as músicas que encabeçavam as principais paradas de sucesso do País. Dentre elas, estava a que me comprometia perante minha genitora: Crítica, de Cyro Aguiar. Avisei a ela e a chamei para ouvir.

– Mamãe Janda, vem ver a música que a senhora disse que eu fiz. Só sei que eu vou ficar é rico! Ela tá em primeiro lugar no Brasil. Escuta aqui no rádio.

Para minha surpresa, ao final da execução musical, ela foi taxativa:

– Num quero nem saber de nada, você só canta mesmo é pra me pirraçar! Num é pra cantar mesmo, não. E acabou!

Nunca mais, portanto, cantei minha canção predileta, o que normalmente fazia no banheiro, onde a estimulante e providencial acústica convidava-me a desfilar meu eclético repertório, mesmo desafinado e sem saber as letras de muitas das canções que “cantava”, como as de Elvis Presley, que minha amiga e ex-vizinha Valmira Queiroz confessou-me que adorava me ouvir cantar.

Também gostava de cantar músicas de brasileiros que adotaram nome artístico estrangeiro, o que era moda à época, entre eles, o pernambucano de Recife, Ivanilton de Sousa Lima, Michael Sullivan, cantor e compositor de My life, canção de enorme sucesso nos anos de 1970.

Alguns cantores adotaram mais de um nome, como Fábio Jr (Mark Davis e Unkle) e Jessé (Christie Burgh e Tony Stevens). Outros, apenas um, como José Pereira da Silva (Chrystian) e Ralf (Don Elliot). São dessa safra os “estrangeiros” Dave McClean, Paul Bryan, Stevie McClean, Terry Winter, Edward Cliff e os grupos musicais Lee Jackson e Pholhas. Morris Albert (Maurício Alberto Kaiserman) foi um dos que obteve maior sucesso internacional com as canções She’s My Girl e Feelings. No entanto, a última, ele foi acusado de plágio por um compositor italiano.

É dessa também época a música Do You Like Samba, de Cyro Aguiar, que faz uma bem-humorada crítica num de seus trechos, ao debochar: “[…] Eu conheço muita gente / Que querendo ser pra frente / Bota a cara pra quebrar / Compra disco brasileiro / Pensando que é estrangeiro / E vai pra casa se esnobar […]”. E no refrão, ele tascou inglês: “Do you like samba / I like do / If you love samba / I love you”. Creio que fiz parte dessa gente… Sem saber (e sem esnobar)!

Como já disse em algum parágrafo anterior, realmente eu gostava de cantar (e ainda gosto) músicas das décadas de 1970 e 1980. Entoava até Canzone per te, melhor canção do Festival de Sanremo – 1968, na Itália, interpretada por Roberto Carlos, primeiro estrangeiro vencedor daquele festival, que fará 50 anos em 2018.

Quanto à música do Rey Roberto Carlos, Canzone per te, lembro-me da ousadia que tive de cantá-la para meu professor de Matemática, o padre italiano Augusto Baldrati, que ao final da minha “apresentação” com pronúncia macarrônica, sorriu bastante. Mas muito polidamente, com seu forte sotaque italiano, me advertiu:

– Meu bichinho do mato, você está falando do jeito que se escreve! Não é bem assim – e ensinou-me corretamente a pronúncia de cada palavra da bela e romântica composição de seu compatrício Sergio Endrigo.

Ainda hoje, continuo a entoar quase todas estas canções em minhas viagens saudosistas e reminiscentes. Porém, a outrora proibida canção do cantor e compositor Cyro Aguiar, Crítica, continua “proibida” na casa da minha mãe, agora, por um motivo até aceitável. Segundo ela, esta música lhe traz muita saudade!

Aí, sim, posso perfeitamente entender e evito cantá-la. E que assim seja!

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